quarta-feira, 11 de agosto de 2010


eu...

O AMOR E A POESIA SÃO AS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS CONTRA A ANESTESIA GERAL DAS CONSCIÊNCIAS E A DOMESTICAÇÃO

Ainda que pouca gente saiba, o amor e a poesia são as últimas trincheiras contra a mercantilização de tudo –inclusive das pessoas. Mas não é fácil visualizar com clareza essa questão. Afinal, existe toda uma orquestração que procura disfarçar o aspecto revolucionário do amor e da poesia. E não adianta dizer que o amor é pros trouxas e pros otários e o sexo é pros espertos.
É preciso não esquecer que o amor proporciona um contato revitalizador entre as pessoas, potencialmente transformador, já que os apaixonados são desobedientes e menos susceptíveis às barganhas e às propostas de renúncia da liberdade em troca de segurança. Os apaixonados estão na chuva pra se molhar , pois o amor potencializa os amantes para a rebeldia e para a criação.
É nessa direção que o livro de André Gorz, Carta a D, História de um amor , abre um hiato, restabelecendo essa vibração afetiva, incontida, desmesurada. Algo que nos faz lembrar de Tristão e Isolda, matriz das histórias de amor em que os apaixonados se amam loucamente e morrem de amar, contra tudo e todos, contra o mundo.
O livro abre com estas palavras: você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
Confesso jamais ter lido algo semelhante em toda a minha vida. Fiquei literalmente de ponta cabeça. Imediatamente lembrei de Alvaro de Campos(um dos heterônimos do Pessoa) ironizando: Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Lembrei, também, do deplorável lugar reservado aos velhos em um mundo regido pelos princípios de eficiência, competência e disponibilidade para a diversão.
Desfilaram pela minha cabeça certas noções indissociáveis da velhice: doenças, solidão, desânimo, dependência, asilo, preconceito--e o banco preferencial no ônibus. Mas os idosos, embora relegados, marginalizados e acusados de não entenderem nada, nao são refratários ao amor. E já foi provado: não se verifica na velhice a suposta desistência da vida sexual e amorosa, pois essas energias são pulsionais e, portanto, inesgotáveis. Claro que uma declaração de amor aos 80 anos só pode provocar estranheza, admiração, perplexidade. Na verdade, fiquei estupefacto, encantado –e muito, muito emocionado.
O imperdível Carta a D, História de um amor, é o último livro de André Gorz(2006). Antes dele, nos anos de repressão da ditadura militar brasileira, quando a polícia fazia a devassa de materiais subversivos, ter na estante um livro de Gorz era considerado delito especial, que merecia pena especial -- conforme depoimento de Ecléa Bosi.
Mas vamos situar melhor este autor que sempre esteve envolvido com temas relevantes da teoria social e da política contemporânea. André Gorz foi filósofo, discípulo e amigo de Sartre, e atuou como jornalista em Le Temps Modernes e Le Nouvel Observateur. Foi considerado um dos principais inspiradores do movimento de Maio de 68 na França. E já nos anos 70 escreveu três livros e diversos artigos que se tornaram referência para os movimentos ecológicos. Isso sem falar da campanha que fez contra as usinas nucleares.
Apesar de tudo isso, do engajamento ideológico, da fama mundial e das proposições de políticas públicas que apontam uma solução radical para a crise social atual, André Gorz confessou desejar a morte dessa sociedade que agoniza para que uma outra que possa nascer de suas cinzas. Textualmente diz: é preciso aprender a enxergar , por detrás das resistências, das disfunções, dos impasses de que é feito o presente, os contornos de uma outra sociedade.
Voltando ao livro, Carta a D, História de um amor , veja o que o André Gorz diz: você foi a primeira mulher que consegui amar de corpo e alma, com quem eu me sentia em ressonância profunda: meu primeiro amor verdadeiro, para dizer tudo. Se eu fosse incapaz de amá-la de verdade, nunca poderia amar ninguém. Encontrei palavras que nunca soubera pronunciar: palavras para lhe dizer que eu queria que permanecêssemos juntos para sempre...
Não estávamos unidos apenas em nossa vida privada, mas também por uma atividade comum, na esfera pública...
Na primavera de 1950, quando os Citoyens du Monde me deixaram desempregado, você me disse, de maneira bem simples: A gente vai conseguir se virar sem eles. E, depois disso, encarou quase alegremente um longuíssimo ano de dureza. Você era o rochedo sobre o qual nós dois, nossa união podia ser construída...
Nosso espaço de vida em comum nunca tinha sido tão ampliado como passou a ser a partir da minha entrada nessa revista. Nós éramos complementares. Nós tínhamos , eu e você, adquirido a fama de inseparáveis obsessivamente dedicados um ao outro como escreveria Jean Daniel mais tarde.
Pra finalizar é necessário dizer que em torno da casa onde queria envelhecer com Dorine, Gorz plantou duzentas árvores. Aquela casa era mágica. Na primeira noite, nós não dormimos. Um escutava a respiração do outro. Depois um rouxinol se pôs a cantar, e um segundo, mais longe, a lhe responder.
Tudo indicava uma velhice serena para os dois lutadores apaixonados. Mas uma doença, contraída por Dorine, atrapalha todos os planos e eles vivem anos a fio procurando vencer essa batalha. Gorz deixa o jornalismo, aprende a cozinhar e cuidar da casa. E em 22 de setembro de 2007, o suicídio de André Gorz e Dorine confirma que ele não seria capaz de viver um segundo sequer sem a presença dela.


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Publicado por Rubens Jardim em 08/08/2010 às 20h07
In: http://www.rubensjardim.com/blog.php