quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Apologia da preguiça

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ENSAIO
Adauto Novaes
O sequestro do nosso tempo pelo trabalho

RESUMO
Em tempos de tecnociência, permanece irrealizada a utopia da libertação do homem pelas máquinas: nunca se trabalhou tanto, e o tempo livre jamais esteve tão fora da pauta. Ora estigmatizado na ordem produtiva, ora exaltado na tradição filosófica, o preguiçoso é hoje o símbolo do tempo livre para o pensamento.
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O trabalho deve ser maldito, como ensinam as lendas sobre o paraíso, enquanto a preguiça deve ser o objetivo essencial do homem. Mas foi o inverso que aconteceu. É esta inversão que gostaria de passar a limpo.

Malevitch, "A Preguiça como Verdade Definitiva do Homem"
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SABE-SE QUE uma única palavra é suficiente para arruinar reputações e, entre todas, preguiça é uma das mais suspeitas e perigosas. Ao longo dos séculos, foi carregada de significações contraditórias e impressionantes variações.
Dela decorre longo cortejo de acusações bizarras, mas também sabe ser tema de obras de arte, poesia, romance, pinturas, reflexões filosóficas: o preguiçoso é indolente, improdutivo, nostálgico, melancólico, indiferente, distraído, voluptuoso, incompetente, ineficaz, lento, sonolento, silencioso. Preguiça e trabalho guardam um misterioso parentesco, quase simétrico e especular.
Para o preguiçoso, "é preciso ser distraído para viver" (Paul Valéry), afastar-se do mundo sem se perder dele; exatamente por isso, é acusado de não contribuir para o progresso.
Além de praticar crime contra a sociedade do trabalho, o preguiçoso comete pecado capital. Pela lógica do mundo do trabalho e da igreja, ele deve sentir-se culpado, pagar pelo que não faz.
Mais: pensadores como Lafargue, Stevenson, Bertrand Russell, Jerome K. Jerome, Marx e Samuel Johnson apostaram no desenvolvimento técnico como possibilidade de liberação do trabalho. Erraram: na era da tecnociência, nunca se trabalhou tanto e nunca se pensou tão pouco. Assim, o espírito tende a se tornar coisa supérflua.

O QUE FAZER. Ao pensar sobre o fazer, o ocioso pode prestar um grande serviço e ajudar a responder à velha questão moral: o que devo fazer? Dependendo da resposta, teremos diferentes definições do que seja o homem, a política, as crenças, o saber, nossa relação com o mundo, e, principalmente, nossa relação com o trabalho. A resposta pode nos dizer não apenas o que fazemos mas também o que o trabalho faz em nós.
Hoje, maravilhosas máquinas "economizam" o trabalho mecânico, mas criam novos problemas: primeiro, uma espécie de intoxicação voluntária, isto é, "mais a máquina nos parece útil, mais ela nos torna incompletos" (Valéry).
A máquina governa quem a devia governar; daí decorre o segundo problema, bem mais complexo: tantas potências auxiliares mecânicas tendem a reduzir "nossas forças de atenção e de capacidade de trabalho mental", o que se relaciona à impaciência, à rapidez e à volatilidade nunca antes vistas.
Assim escreveu Paul Valéry (1871-1945): "Adeus, trabalhos infinitamente lentos, catedrais de 300 anos cuja construção interminável acomodava curiosas variações e enriquecimentos sucessivos... Adeus, perfeições da linguagem, meditações literárias e buscas que tornavam as obras ao mesmo tempo comparáveis a objetos preciosos e a instrumentos de precisão!
[...] Eis-nos no instante, voltados aos efeitos de choque e contraste, quase obrigados a querer apenas o que ilumina uma excitação de acaso. Buscamos e apreciamos apenas o esboço, os rascunhos. A própria noção de acabamento está quase apagada".

MONTAIGNE Valéry retoma uma tradição. Lemos em Montaigne (1533-92) que "a alma que não tem um fim estabelecido perde-se. Porque, como se diz, estar em toda parte é não estar em lugar algum". Aqui, entendemos por alma o "trabalho teórico do espírito", potência de transformação. O que leva a alma (espírito) a se perder é o trabalho desordenado.
Habitar o próprio eu, comenta Bernard Sève, é o projeto de Montaigne: viver em repouso, longe das agitações do mundo, retirar-se da pressa do mundo "para se conquistar, passar do negotium ao otium", do negócio ao ócio.
É isso que podemos ler na inscrição que Montaigne mandou pintar nas paredes da sua torre: "No ano de Cristo de 1571, aos 38 anos, vésperas das calendas de março, dia de aniversário de seu nascimento, depois de exercer longamente serviços na Corte (Parlamento de Bordeaux) e nos negócios públicos [...] Michel de Montaigne consagrou este domicílio, este tranquilo lugar vindo de seus ancestrais, à sua própria liberdade, à sua tranquilidade, ao seu 'loisir' (otium)".
Eis que Montaigne recolhe-se ao ócio reflexivo, com um espírito criativo leve e vagabundo. Como escreve Sève, um Montaigne distante das pressões políticas e das injunções do trabalho burocrático, com o espírito já amadurecido, "construído pela vida, espírito prestes ao fecundo exercício de uma ociosidade inteligente e feliz". Mas interpretemos com cuidado esse afastamento do mundo.
Se a vida teórica aparece mais compensadora, é porque Montaigne não encontrou na vida prática -social e política-, no Parlamento de Bordeaux, aquilo que buscava. À diferença dos comuns, Montaigne não procurava satisfação no reconhecimento social e político. No ócio, preferiu a busca da verdade às coisas da política.
Sua "contemplação" teórica é discursiva, isto é, transforma-se em atos de pensamento e, portanto, em atividade prática. Nascem aí os monumentais "Ensaios".
 
FOUCAULT . A aliança entre capital, igreja e disciplina militar para regular o trabalho tem história. Em um curso de 1973, ainda não publicado, Michel Foucault (1926-84) narra a institucionalização do trabalho através da "fábrica-caserna-convento" no final do século 19. Ele descreve as regras de uma comunidade fechada de até 400 trabalhadores: acordar às 5h, 50 minutos para toalete e café, trabalho nas oficinas das 6h10 às 20h15, com uma hora para as refeições. À noite, jantar, reza e cama às 21h. Só no sul da França, 40 mil operárias trabalhavam nessas condições.
O trabalhador é fixado no aparelho produtivo, no qual "o tempo da vida está submetido ao tempo da produção". Vemos nessa experiência uma mudança essencial que nos interessa porque se torna mais aguda e determinante no trabalho hoje: "da fixação local a um sequestro temporal". Ou melhor, da ideia de controle do espaço no trabalho à ideia de controle do tempo.
O trabalho sequestrou o tempo. Se, no século 19, o controle do tempo era apresentado ao operário como um "aprendizado de qualidades morais" que, na realidade, significava a integração da vida operária ao processo de produção, hoje o controle é aceito com naturalidade, e até mesmo desejado.
O homem se integra voluntariamente "a um tempo que não é mais o da existência, de seus prazeres, de seus desejos e de seu corpo, mas a um tempo que é o da continuidade da produção, do lucro".
A reivindicação de tempo livre tornou-se quase que palavra de ordem subversiva: "Preciso tanto de nada fazer que não me resta tempo para trabalhar", conclama Pierre Reverdy, citado no prefácio ao livro de Denis Grozdanovitch "A Difícil Arte de Quase Nada Fazer"

TRABALHO CEGO. A mobilização veloz e incessante do trabalho cego não permite ao homem dizer qual é o seu destino e muito menos o que acontece. Ele não dispõe de tempo para pensar e muito menos tem consciência de que seus gestos, no trabalho, produzem muito mais do que os objetos que fabrica.
Há um excedente invisível, entendendo-se por "excedente" tudo o que não é mensurável, que produz catástrofes através do trabalho "normal e produtivo" e se manifesta na poluição, nos desastres ecológicos, no esquecimento e na desconstrução de si.
Como nos lembra Robert Musil em "O Homem sem Qualidades", foi preciso muita virtude, engenho e trabalho para tornar possíveis as grandes descobertas científicas e técnicas, graças aos sucessos dos "homens de guerra, caçadores e mercadores". Tudo isso fundado na disciplina, no senso de organização e na eficácia do trabalho, o que talvez pudesse ser resumido assim: o trabalho mecânico da produção de mercadorias pretende tomar o mundo de assalto, produzindo agitação social e frenesi econômico e consumista, dada a multiplicação de objetos "não naturais e não necessários".
Já o preguiçoso põe-se na escuta de si e do mundo que o cerca.
 
PENSAMENTO. Talvez o mais danoso de todo esse legado para o espírito humano seja a criação de um mundo vazio de pensamento que o ocioso procura preencher. Guardo uma imagem que o poeta e filósofo Michel Deguy me fez ver à janela de seu apartamento, em Paris: um mendigo que dormia 20 horas por dia na escadaria da igreja Saint-Jacques.
Deguy narra essa experiência em um pequeno ensaio com o título "Do Paradoxo": em imagem semelhante, diz ele, também nas escadarias de uma igreja, "a 'Derelitta' de Botticelli está pelo menos sentada, parecendo meditar. Hoje, ninguém medita, como dizia Valéry na figura de M. Teste. Portanto, o mendigo talvez não esteja errado, uma vez que o fato de estar deitado nada muda [...] E quando lembro que Pascal era o pároco da igreja e cuidava dos abandonados, a comparação me perturba: os 'pobres' não são mais como eram -mas os pensadores também não. Portanto, o 'despertar do pensamento'? Nós, você e eu, não queremos dormir. Mas estamos acordados?"
O trabalho técnico, mecânico e acelerado abole o tempo do pensamento, que exige virtudes atribuídas ao preguiçoso: paciência, lentidão, devaneio, acaso -o imprevisto. Em um texto célebre, Valéry nota: "O futuro não é mais como era". Isto é, não há mais o tempo lento do pensamento, momento em que o tempo não contava. Sabemos que é na vida meditativa e lenta que o homem toma consciência da sua condição.
 
SERES OCULTOS. Ora, como escreveu ainda Valéry, o amanhã é uma potência oculta, e o homem age muitas vezes sem o objeto visível de sua ação, como se outro mundo estivesse presente, "como se ele obedecesse a ações de coisas invisíveis ou de seres ocultos".
Essa poderia ser uma boa definição do ocioso. Coisas invisíveis e seres ocultos participando do mundo do devaneio e do pensamento. Mundo do trabalho do espírito, em contraposição ao trabalho mecânico.
As ideias e os valores, lembra-nos Maurice Merleau-Ponty (1908-61), não faltam a quem soube, na sua vida meditativa, liberar a fonte espontânea, não deliberadamente, em direção a fins predeterminados por cálculos técnicos e produtivos. Todo trabalho finito e alienado é pura perda.
Através de uma admirável reversão, o meditativo transforma a desrazão do mundo do trabalho alienado em fonte de razão. Isso porque o trabalho meditativo do ocioso é um trabalho sem finalidade, sem "telos", um trabalho sem fim. O trabalho meditante do ocioso exige muito mais trabalho do que o trabalho mecânico. O trabalho da obra de arte e da obra de pensamento pede um tempo que não pode ser medido pelo relógio.
 
PREGUIÇOSO. Como se pode, então, pensar essa figura que sempre teve péssima reputação? Talvez uma boa definição seja a de um autor inglês, Jerome K. Jerome (1859-1927), em seu livro "Pensamentos Preguiçosos de um Preguiçoso" (1886): "O que melhor caracteriza um verdadeiro preguiçoso é o fato de ele estar sempre intensamente ocupado. De início, é impossível apreciar a preguiça se não há uma massa de trabalho diante de si. Não é nada interessante nada fazer quando não se tem nada a fazer! [...] Perder seu tempo é uma verdadeira ocupação, e uma das mais fatigantes. A preguiça, como um beijo, para ser agradável, deve ser roubada".
Jerome K. Jerome leva-nos a pensar que a preguiça não é coisa passiva. Perder o tempo mecânico dá trabalho e exige enorme atividade do espírito.
O egípcio Albert Cossery é apresentado pela revista francesa "Magazine Littéraire" como o escritor contemporâneo que celebra a preguiça como uma arma de subversão política e como um modo de resistir à impostura das potências. Para Cossery, o exercício da preguiça tem o valor da arte de viver. Mas ele distingue dois tipos de preguiçosos: os idiotas e os reflexivos.
"Um idiota preguiçoso permanece idiota!", escreve. "E um preguiçoso inteligente é quem reflete sobre o mundo no qual vive. Mais você é ocioso, mais tempo você tem tempo para refletir... Esses são os valores da preguiça, que supõe, pois, dupla recusa: nosso mundo imediato e a triste realidade."
Mas o mais radical dos libelos contra o trabalho alienado continua a ser o pequeno ensaio de Paul Lafargue (1842-1911), "O Direito à Preguiça" (1880). "Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a fortuna social e suas misérias individuais; trabalhem, trabalhem, para que, tornados mais pobres, tenham mais razões ainda para trabalhar e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista".
Para Lafargue, o trabalho é invenção relativamente recente, uma vez que os antigos gregos desprezavam o trabalho e deliciavam-se com os "exercícios corporais" e os "jogos de inteligência". Ele critica a moral cristã ao proclamar o "ganharás o pão com o suor do rosto" e ao lembrar que Jeová, "depois de seis dias de trabalho, repousou por toda a eternidade".
Robert Louis Stevenson (1850-94), na "Apologia dos Ociosos" (1877), mostra que o ócio "não consiste em nada fazer, mas em fazer muitas coisas que escapem aos dogmas da classe dominante".

MELANCOLIA. A tradição relaciona a melancolia e o devaneio à preguiça. Nisso, mais uma vez, igreja e capital estão juntos. O trabalho é o grande meio que a igreja encontrou para lutar contra a melancolia e a vertigem do tempo livre. Seu lema sempre foi "Rezai e trabalhai", ou seja, só abandonar a oração quando as mãos estiverem ocupadas.
Lemos em um ensaio de Jean Starobinski sobre a melancolia -"A Erupção do Diabo-" que o trabalho tem por efeito ocupar inteiramente o tempo que não pode ser dado à oração e aos atos de devoção: "Sua função", escreve ele, "consiste em fechar as brechas por onde o demônio poderia entrar, por onde também o pensamento preguiçoso poderia escapar". Assim, o trabalho interrompe o "vertiginoso diálogo da consciência com seu próprio vazio".
A crítica que Jean-Jacques Rousseau (1712-78) faz ao trabalho não é diferente. Na sétima caminhada dos "Devaneios de um Caminhante Solitário" (1782), ele busca a solidão, mas procura trabalhar tudo o que o cerca, escolhendo o mais agradável. Não escolhe os minerais porque, escondidos no fundo da terra "para não tentar a cupidez", exigem indústria, trabalho, pena e exploração dos miseráveis nas minas.
As plantas não. A botânica é o estudo de um "ocioso e preguiçoso solitário": "Ele passeia, erra livremente de um objeto a outro, passa em revista cada flor... Há, nesta ociosa ocupação, um charme que só se sente na plena calma das paixões, o que basta para tornar a vida feliz e tranquila. Mas, quando se mistura aí um motivo de interesse ou vaidade, seja para ocupar espaços, seja para escrever livros, ou quando se quer aprender apenas para se instruir ou pesquisar as plantas apenas para se tornar professor, todo o charme da tranquilidade se desfaz; [...] no lugar de observar os vegetais na natureza, ocupa-se apenas com sistemas e métodos".
O que importa hoje, talvez, é propor a luta do progresso contra o progresso; isto é, a valorização do progresso do espírito, a valorização dos valores contra o progresso técnico, esta "ilusão que nos cega". Eleger a quietude, o silêncio e a paciência para conhecer e aprofundar indefinidamente as coisas dadas.
Eis o ócio que Karl Kraus (1874-1936) nos propõe: "Se o lugar aonde quero chegar só puder ser alcançado subindo uma escada, eu me recusarei a fazê-lo. Porque lá aonde eu quero realmente ir, na realidade já devo estar nele. Aquilo que devo alcançar servindo-me de uma escada não me interessa".
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"O que importa hoje, talvez, é propor a luta do progresso contra o progresso; isto é, a valorização do progresso do espírito, a valorização dos valores"

"Além de praticar crime contra a sociedade do trabalho, o preguiçoso comete pecado capital. Pela lógica do mundo do trabalho e da igreja, deve sentir-se culpado"

"O trabalho meditativo do ocioso é sem finalidade, sem "telos", um trabalho sem fim; exige muito mais trabalho do que o trabalho mecânico"

"O trabalhador é fixado no aparelho produtivo, no qual "o tempo da vida está submetido ao tempo da produção". O trabalho sequestrou o tempo"