quinta-feira, 28 de abril de 2011

caudalosidade


meu rio passa
roçando as margens com furor
lambe com volúpia
os orifícios das rochas
encravadas no seio da terra
apalpa raízes e caules rijos
sacode juncos intumescidos
esfola musgos escorregadios
lodo e pedras se abraçam
misturando-se ao gozo das águas
no leito profundo...
do meu rio que passa

Izabel Lisboa

quarta-feira, 27 de abril de 2011

caleidoscópio

eu vi
um cidadão do mundo
falando de solidão
num café em Paris

eu vi
um cidadão do mundo
mendigando no calçadão
roendo um pedaço de pão

eu vi
um cidadão do mundo
reclamando seu quinhão
num programa de calouros da televisão

eu vi
um cidadão do mundo
no boteco tomando cachaça
gastando seu último tostão

eu vi
um cidadão do mundo
corpo e alma em inquietação
sendo apenas mais um na perdida multidão

Izabel Lisboa

fissura

a unha
afiada
rasga
a carne

a mão
tremula
abre
o álcool

despeja
...
e goza
na outra dor

Izabel Lisboa

segunda-feira, 25 de abril de 2011

desconcerto

























sobrevoando o tronco seco de uma árvore
um corvo agourento espreita
-Alan Poe foi um profeta...

um vento estranho assobia e varre a terra
talvez prenuncio de um inverno fora de hora
de um avesso do avesso desconhecido...desconcertante


ontem os feixes eram levados entre lágrimas
abundante fé num céu vindouro
certeza de uma terra prometida...


hoje?! cadê o cheiro de terra depois da chuva...cheiro de vida
cadê a terra...nossos sete palmos dela
nosso repouso eterno...cadê?!


o mundo concreto é de concreto
mesmo as covas...
são de frio concreto...muito frio...muito


nem os trinta e dois dentes brilhantes e brancos
do sorriso de Berenice
me trazem paz


sobrevoando o tronco seco de uma árvore
um corvo agourento espreita
-Alan Poe foi um profeta...Alan Poe foi um profeta...

Izabel Lisboa



domingo, 24 de abril de 2011

A carne alva de Proserpina

Gianlorenzo Bernini - O Rapto de Proserpina

 
chegarei à tua alma
somente isso almejo
nela farei meu ancoradouro
aportarei para sempre ali
sou deus
minha divindade te subjugará
ante tamanho fascínio te levarei comigo
rumo às profundezas dos abismos da terra fértil
percorrerei trilhas e desfiladeiros
vales e cavernas misteriosas
deleitosos caminhos de tua carne alva
sorverei o néctar dos sulcos mais profundos
que nenhum mortal ousou tocar
despojado de minha divindade
serei escravo de tuas entranhas
nos verões e primaveras
os que habitam a superfície da terra
gozarão saciados com tua presença
padecerei fome...
nos invernos e outonos
tu serás minha...
ai dos homens... será para eles tempo de penúria

Fernanda Takai - Insensatez

sábado, 23 de abril de 2011

tal & qual



e esse seu lado pragmático
e essa sua cara lavada
e toda essa sua estupidez
de agredir primeiro
e ponderar depois
ambíguo insensato nada sutil
cheio de artimanhas
dizendo que isso faz parte
afinal você é humano
não obstante
na maioria das vezes... desumano!
buscando suas certezas
tateando seu chão
aos trancos e barrancos
de um jeito ou de outro
tentando amenizar o seu desgosto
de maneira insana
as vezes camusiana
[absurdamente]
ou kierkegaardiana
[desesperadamente]
contudo
apesar de tão diferentes
há entre nós certa simbiose...
buscamos juntos
à mesma proporção
cada um a sua maneira
aquela mesma emoção...

revolta armada

- uma cabeça quente não pensa,
uma cabeça quente ferve, fervilha
e isso é bom... isso é muito bom
enfiaram-me goela abaixo
os disparates de sempre
agora é hora do vômito:
- não venham falar em liberdade
carcereiros de plantão
pregadores da liberdade, vocês outros
enquanto constroem prisões
desfiam rosários de compaixão
trancafiam uma alma
apenas com um olhar
seus navios, ontem negreiros
hoje empilham em seus porões
todas as cores do arco-íris
- éramos todos prisioneiros
quando fizemos aquelas promessas
não passávamos de prisioneiros
tínhamos tampões nos olhos
como as viseiras dos animais de carga
tínhamos mãos e pés acorrentados
aprendemos somente depois
em nossas lutas
no campo de batalha
que verdadeira quimera
é não ter o rabo preso e
conservar sempre, sempre
a língua solta... E afiada

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Under Pressure



"E o amor te desafia a se importar com
As pessoas no limite da noite,
E o amor desafia você a mudar nosso modo de
Nos preocupar com nós mesmos
Esta é nossa última dança
Esta é nossa última dança
Isto somos nós mesmos
Sob pressão
Sob pressão
Pressão..."

quinta-feira, 21 de abril de 2011

é noite...

 
 

...e aquele beijo que me cale a boca
e arrefeça urgências
antes que amanheça...?



um [?] colecionador de alter egos

persona


quebrou seu melhor espelho
em mil e Um fragmentos de si
semeou eus
embrenhou-se naquela multidão pessoal
[e virtual]
desocupou-se de si
descongestionou-se de si
ocultou-se [neles e deles]
espalhou seus cacos
fez-se anônimo
pseudônimo[s]
num caleidoscópio de si
[e era tão bom
que todos pediam bis...]

resposta pro Chico

sem me afobar ter que esperar milênios
e guardar no fundo de um armário
o amor que hoje não posso te dar
- terei eu esse frio sangue?
de aguardar um escafandrista chegar
e num futuro remoto e distante
numa cidade submersa explorar
minha casa
meu quarto
minhas coisas
meus desvãos
aguardar e aguardar
que sábios decifrem
o eco de minhas palavras
os fragmentos de meus poemas
tendo de me contentar
que futuros amantes se amem
sem saber
com o amor que um dia
deixei pra você?

- sobre-humana paciência...

Futuros Amantes - Chico Buarque

quarta-feira, 20 de abril de 2011

o cheiro do ralo

Ele entra. Coloca o violino em minha mesa. Não fala nada. Nem boa tarde. Fico em silêncio.
Afinal o interesse é dele. Então ele fala, quanto? Chuto, tanto. Ele coça a barba.
Esse violino deve ter história, chuto. Ele me olha. Seu olhar me incomoda. Ele pega o violino e sai.
Mas antes de fechar a porta, solta:
Aqui cheira a merda.
É o ralo.
Não. Não é não.
Claro que é.
O cheiro vem do ralo.
Ele entra e fecha a porta.
O cheiro vem de você.
Olha lá.
Levanto e caminho até o banheirinho.
Olha lá, o cheiro vem do ralinho.
Ele ri coçando a barba.
Quem usa esse banheiro?
Eu.
Quem mais?
Só eu.
Ele continua com o sorriso no rosto, solta:
E então, de onde vem o cheiro?"

(trecho de O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli - livro que inspirou o filme).

domingo, 17 de abril de 2011

de Lisboa à Vera Cruz



ser Lisboa...
Pessoa
lusitana
mais que além mar
sobre cascos de caravelas
inundar o Atlântico
em prantos
não querendo ir
não podendo ficar
para não esquecer os poetas de cá:
doce seria morrer no mar...
entre pátrias
entre vagas e borrascas
gaivotas e fragatas
entre pátrias amadas
fados e pagodes
descobrindo Brasis
recitando Camões
desmascarando Cabrais
resgatando Portugais
mundo velho
novo mundo
por aqui
por lá
lusitanamente
brasileiramente
mamelucamente
ser...

Izabel Lisboa

terça-feira, 12 de abril de 2011

apetrechos e cangalhas












o dotô sabe das coisa
é letrado nos conhecimento
eu, de minha parte
aprendi a vida no lombo de um jumento
levando caçuás na canga
e sol à queimar as venta
quem sabe num era eu o bicho
que devia servir de assento
ao invés do pobre jumento?!


Izabel Lisboa

terça-feira, 5 de abril de 2011


é

um fio de suspiro
com hálito de vida

uma pequena janela da alma
donde se debruçam olhares

um minúsculo grão de areia
com jeito nobre de esperança

um bater de asas de colibri
onde as almas se refrescam

um contínuo aperto no peito
que nas ausências inunda os leitos

um não sei que com jeito de dor
que os poetas chamam: amor


Izabel Lisboa